“A América Latina tem o direito de se industrializar”

Em entrevista, a secretária-executiva do Foro de São Paulo defende novo modelo de industrialização da região sem perder de vista a questão ambiental
09/08/2023
por
Katarine Flor*

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Em entrevista, a secretária-executiva do Foro de São Paulo defende novo modelo de industrialização da região sem perder de vista a questão ambiental

Secretária-executiva do Foro de São Paulo, Mônica Valente
Secretária-executiva do Foro de São Paulo, Mônica Valente. Divulgação

“No período, dos governos conservadores, voltamos a ser uma região basicamente exportadora de commodities”, avalia a secretária-executiva do Foro de São Paulo, Mônica Valente. Ela acrescenta: “a nossa região quer ter o direito de se reindustrializar, de criar empregos de qualidade, isso sem perder de vista a discussão da proteção ambiental”.

O tema esteve presente durante o 26º Encontro do Foro de São Paulo realizado em junho e julho em Brasília. Em entrevista à Fundação Rosa Luxemburgo, Mônica Valente destaca a integração regional latino-americana e caribenha como a principal estratégia da região para o avanço de pautas ambientais, econômicas, sanitárias e educacionais. Além disso, Mônica Valente ressalta a a importância do diálogo com a esquerda europeia, apontando o combate às redes de disseminação de mentiras mantidas pela extrema direita como um dos principais desafios a serem compartilhados.

Confira a entrevista completa:

Fundação Rosa Luxemburgo: Como a senhora avalia o ambiente político em que se realizou o 26º Encontro do Foro de São Paulo e as correlações de forças políticas na região da América Latina e Caribe?

O 26º Encontro do Foro de São Paulo foi realizado em um ambiente de celebração. Primeiro, porque não nos reunimos presencialmente desde 2020, por causa da pandemia e de suas consequências. Segundo, porque nós tivemos muitas lutas de resistência dos povos, dos movimentos sociais e populares nesse período. E também muitas vitórias eleitorais. Em alguns países, conseguimos derrotar a extrema direita e setores neoliberais, mudando a correlação de forças. Conseguimos eleger governos mais progressistas na região.

Apesar disso, o cenário mundial nos preocupa. Nossos países mal conseguiram se recuperar de todas as perdas econômicas e das perdas de vidas humanas causadas pela pandemia – e muitos ainda não conseguiram – e estourou a guerra. Ela criou novos desafios do ponto de vista econômico e do ponto de vista da soberania alimentar, como o tema de fertilizantes e tudo mais.

Temos, então, um cenário complexo. Vivemos uma crise do capitalismo desde 2008, que não se resolve pela própria natureza do sistema econômico, agravada pela pandemia e pela guerra. Temos um cenário de queda da hegemonia dos Estados Unidos e da ascensão de novos polos de poder no mundo, mas ainda não existe a tão sonhada multipolaridade. Estamos passando por um processo de transição. Isso nos preocupa porque ao mesmo tempo a extrema direita cresce em muitos dos nossos países da América Latina e outros fora da região.

Foi nesse cenário que o 26º Encontro do Foro de São Paulo se realizou: analisando todas essas potencialidades e desafios e aprofundando o debate sobre a integração regional latino-americana e caribenha, que é a principal estratégia da nossa região. Debatemos também sobre a necessidade de uma transição energética de proteção ao meio ambiente e às nossas florestas. Além do debate contra a continuidade de bloqueios e sanções unilaterais, que seguem sendo utilizadas como mecanismos de pressão contra a soberania de muitos povos na América Latina, como: a Venezuela, Cuba e a própria Nicarágua.

FRL: Que desafios estão colocados hoje para a integração regional latino-americana e caribenha?

No período dos governos progressistas, a gente conseguiu construir uma institucionalidade da integração regional, com a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac) e com o fortalecimento do Mercado Comum do Sul (Mercosul). Essas iniciativas quase foram dizimadas pela ascensão das forças conservadoras, seja por meio de golpe, seja pelas eleições que o campo progressista perdeu. Agora, há uma retomada dessa institucionalidade multipolar, multilateral na América Latina e no Caribe, mas que não é suficiente para a integração regional. Nesse sentido, o Foro de São Paulo conseguiu aprofundar algumas linhas de sugestões que os nossos partidos, com ajuda dos movimentos sociais e populares, vão buscar incidir sobre os governos, sejam os mais progressistas, seja os outros não progressistas.

Para a integração regional, um dos temas mais essenciais é o ambiental. Sabemos que não é possível proteger, por exemplo, a Amazônia de maneira isolada. E, nesse sentido, já está marcada para agosto a reunião de cúpula dos países da Amazônia, convocada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para discutir uma perspectiva de cuidado para a Amazônia de um ponto de vista mais regional. Isso é muito importante, porque se vincula com a integração econômica. Todos os nossos países almejam uma reindustrialização.

No período dos governos mais conservadores, voltamos a ser basicamente exportadores de commodities, de produtos como soja, minérios de ferro e lítio. Nossa região não quer ser exportadora de commodities. Quer ter o direito de se reindustrializar, de criar empregos de qualidade, isso sem perder de vista a discussão da proteção ambiental. Queremos elevar esse tema a outro patamar, usando a ciência e a tecnologia para superar velhos modelos e criar novos paradigmas para o mundo todo, de forma a garantir uma transição energética para essa reindustrialização.

Nossa região é uma das que possuem mais riqueza e diversidade de fontes de energia limpa. Recentemente, o presidente Lula comentou sobre isso na cúpula da Celac com a União Europeia. Então, o caminho é a gente apontar para essa reindustrialização à luz de um novo modelo, que preserve o meio ambiente e que incorpore ciência e tecnologia nesse processo.

É possível a gente avançar também na integração regional sanitária, do ponto de vista da saúde. Durante a pandemia, sofremos por falta de insumos, de ingrediente farmacêutico ativo, da produção de vacinas etc. Ao mesmo tempo, Brasil, Cuba, Argentina e México têm expertise em ciência e tecnologia, em biotecnologia da indústria farmacêutica e em vacinas. Podemos nos tornar uma região autônoma em relação às chamadas Big Pharmas. A Unasul, por exemplo, já tinha criado um instituto de saúde de todos os países da América do Sul com vistas a promover essa integração sanitária. Outro ponto seria a integração educacional. É muito importante que os nossos jovens tenham a possibilidade de mobilidade acadêmica, que possam estudar em universidades de toda a região. Isso ajuda do ponto de vista cultural, humanitário e civilizatório.

FRL: Como avalia o resultado da Cúpula Celac – União Europeia?

Os resultados foram muito positivos. Primeiro, porque a cúpula voltou a ocorrer depois de oito anos, nunca mais havíamos tido essa reunião dos nossos 33 chefes de Estado da Celac com os 27 europeus. Esse, por si só, já é um grande êxito. Nós – que defendemos um mundo mais igual, justiça social e soberania de todos os povos e países – não somos a favor da hegemonia unipolar, mesmo bipolar. E esses encontros mais multilaterais contribuem para o intercâmbio de ideias, de propostas políticas.

Além disso, muitas discussões foram aprofundadas, por exemplo, o tema do acordo União Europeia com o Mercosul. O tipo de debate que é feito durante essa cúpula é muito enriquecedor e, inclusive, criador de paradigmas.

Destaco o fato de os países que fazem parte da Celac e estão no Mercosul hoje conseguirem dizer, em alto e bom som, que não vão aceitar ser sancionados, que não vão aceitar serem ameaçados – afinal, quem faz um acordo, faz um acordo de boa fé, não “com uma faca no pescoço”, como essa última carta da União Europeia tenta fazer em termos ambientais. Não só de condenar esse tipo de ameaça, mas também de deixar claro que nós não vamos aceitar nenhum acordo que coloque em risco o nosso direito soberano à nossa industrialização.

O presidente Lula, na coletiva de avaliação da viagem, foi muito feliz quando explicou que todos os países desenvolvidos tiveram e têm ainda proteção às suas compras governamentais, porque é assim que você garante a pequena e média indústria em cada um dos países. Se isso existe no mundo desenvolvido, por que não pode ter no mundo em desenvolvimento?

Em terceiro lugar, outro aspecto positivo foi que a América Latina demarcou um campo em defesa da paz. A América Latina, sem entrar no mérito do problema que deu origem ao conflito no território ucraniano, foi muito firme, como Celac, em reafirmar sua vocação para a paz, a sua disposição para mediar e preparar um caminho de diálogo e de negociação, porque isso não é uma coisa simples.

FRL: Qual é a importância dessa defesa da América Latina e Caribe como uma região de paz?

Essa defesa é fundamental porque nós somos partidos e setores populares da sociedade. Em qualquer guerra ou em qualquer conflito armado, quem perde vidas primeiro e paga a conta são os povos, os mais pobres, são as classes sociais menos favorecidas. São eles que vão para guerra. São as famílias mais pobres que sofrem com a inflação dos alimentos.

A América Latina e o Caribe têm vocação para a paz. No período recente, a solução para os conflitos na região tem se caracterizado pelo caminho do diálogo e da negociação. Nossas forças armadas, cada vez mais, devem estar voltadas para proteção das fronteiras, para os temas que dizem respeito à soberania dos Estados. E não para a guerra. Isso custa orçamento público, custa dinheiro. Traz perdas para os nossos países.

Em 2016, nós tivemos um acordo de paz assinado entre uma parte da insurreição e o Estado colombiano, entre as FARC e o governo chefiado pelo então presidente Juan Manuel Santos. Esse acordo foi muito importante para Colômbia. Foram 50 anos de guerra interna. Agora, o governo colombiano e outros países latino-americanos estão investindo no processo de negociação com outras insurreições políticas.

O atual presidente colombiano Gustavo Francisco Petro já começou a querer estabelecer negociações com as chamadas Milícias Armadas, que não são políticas. São agrupamentos armados que se estabelecem nos territórios para controle do narcotráfico, entre outros interesses econômicos.

Os conflitos existem, mas precisam ter como solução o caminho do diálogo, da negociação e da construção de soluções. E o presidente Lula pode contribuir muito, porque é um pacifista por natureza e isso nos ajuda muito.

FRL: Falando do presidente brasileiro, durante o encerramento da Cúpula para um Novo Financiamento Global, o presidente Lula cobrou a reforma de instituições multilaterais como ONU e FMI, que, segundo ele, não representam mais o mundo de hoje. Qual a posição do Foro de São Paulo sobre este tema?

Nós, em tese, somos a favor da reforma dos organismos multilaterais. Eles precisam se adequar aos novos tempos suas decisões devem ser levadas a sério. Eu vou dar um exemplo: faz mais ou menos uns 20 anos que a Assembleia Geral da ONU aprova de maneira majoritária o fim do bloqueio econômico a Cuba, que já dura 63 anos. Porém, essa resolução não é obedecida, simplesmente não é seguida. Os Estados Unidos seguem bloqueando. Pior: seguem mantendo e agravando as medidas de sanções econômicas tomadas pelo ex-presidente Donald Trump. O atual presidente Joe Biden – embora tenha se comprometido na campanha eleitoral a rever isso ou, pelo menos, rever as 286 novas medidas do bloqueio a Cuba tomadas por Trump – não só não levantou nenhuma delas, como também colocou Cuba em uma lista hedionda de países patrocinadores do terrorismo, o que dificulta ainda mais os mecanismos econômicos e as punições. É um absurdo!

Portanto, é necessária a revisão desses organismos multilaterais para que eles tenham eficácia. Para que as decisões tenham repercussão na vida das pessoas. Se não, para que serve uma organização de nações unidas se suas decisões não têm efeito?

Nesse sentido, o Foro de São Paulo sempre se posicionou pela democratização, pela reforma e, mais ainda, pela mudança dos critérios. Os organismos financeiros, o FMI e o Banco Mundial, impõem regras de subordinação às políticas nacionais, econômicas e fiscais para conceder empréstimos aos países.

Se a gente quiser combater a pobreza, a desigualdade e a destruição do planeta terra é preciso tomar providências urgentes e decisivas nos órgãos multilaterais que nós temos no mundo hoje.

FRL: Qual a importância do intercâmbio com o Partido da Esquerda Europeia nesse momento de ascensão da extrema direita na Europa?

A relação com o Partido da Esquerda Europeia pode ser muito frutífera no sentido de intercambiar experiências, de pensar ações conjuntas. Nesse encontro do Foro, realizamos o 8º Seminário Visões Compartilhadas entre o Partido da Esquerda Europeia e o Foro de São Paulo, que tratou do tema da comunicação, das mudanças climáticas e das migrações, temas que afetam as nossas duas regiões.

Convidamos dois pesquisadores, uma cientista social e um antropólogo, que fizeram um estudo muito detalhado das redes sociais e das fake news da extrema direita. Foi identificada uma rede mundial de notícias falsas, com financiamento internacional. Duas das maiores bases de produção de conteúdos falsos estão na Espanha e na Hungria. O Foro de Madrid, por exemplo, é fruto disso. É um órgão produtor de conteúdos falsos sobre o Foro de São Paulo, sobre as nossas lideranças, sobre as políticas dos governos dos nossos partidos.

Um dos principais financiadores dessa rede de fake news mundo é o partido Vox, da Espanha. Não é por outra razão o crescimento de valores como o ódio e a intolerância, ligação com a política, que o jogador brasileiro Vinny Júnior sofreu e continua sofrendo ataques racistas na Espanha. Justamente no país que sedia o Foro de Madrid, de onde partem todas essas notícias falsas e a criação desse ambiente de intolerância e de ódio.

Então, a nossa relação com o Partido da Esquerda Europeia pode contribuir no combate a essa rede de notícias falsas; para fazer o debate tal como ele é, junto com as nossas sociedades; para construir propostas conjuntas de regulação das mídias sociais, seja na Europa, seja na América Latina, seja em cada um dos nossos países. Isso é muito importante porque mais cabeças pensam melhor. Juntos, temos mais ideias, somos mais criativos. Analisamos ângulos que de um de um país só, de um partido só não é possível perceber.

FRL: Quais as perspectivas de continuidade desse diálogo entre o Foro de São Paulo e a esquerda europeia?

Esperamos fazer a 9ª edição do Seminário Visões Compartilhadas no ano que vem em território europeu porque a ideia é, a cada ano, de um lado do Atlântico. Pretendemos incentivar também os partidos membros do Foro de São Paulo a participarem do Foro europeu, uma iniciativa da qual o Partido da Esquerda Europeia tem grande participação e coordenação, que deve ocorrer em Madrid em novembro. Não é um Foro só de partidos políticos, também congrega parte do movimento sindical europeu, movimentos ecológicos e outras organizações da sociedade europeia.

É também um momento importante de intercâmbio entre o Foro de São Paulo e o Foro europeu. Esperamos que no ano que vem a gente possa fazer um novo seminário Visões Compartilhadas comemorando, pelo menos, a suspensão da guerra no território da Ucrânia. Seria um grande presente para a humanidade.

* Katarine Flor é jornalista e coordenadora de comunicação no escritório de São Paulo da Fundação Rosa Luxemburgo