“Nossa resistência dá luz ao que o agro-hidro-minero-negócio invisibiliza”

“Mulheres, Ambiente e Território: conflitos, resistências e (re) existências” foi o tema da última sessão do curso de extensão promovido pela Coletiva Diálogos Feministas e pela Fundação Rosa Luxemburgo. A aula foi realizada no dia 19 de Setembro e está disponível em vídeo.
13/10/2022
por
Eliege Fante

Desde a grande metrópole, como o Rio de Janeiro, até o interior dos estados, como nos municípios Limoeiro do Norte e Quixeré no Ceará, os projetos de desenvolvimento acordados entre grandes empresas e governos, dizem levar progresso, emprego, riqueza. Contudo, as mulheres evidenciam as marcas da degradação ambiental e na qualidade de vida de moradores e das comunidades tradicionais.

Liderança da Comunidade do Horto, Emília Maria de Souza

A liderança da Comunidade do Horto, Emília Maria de Souza, aponta o Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro, como o responsável por construir prédios e alojamentos na área remanescente de Mata Atlântica, causando a perda de habitat da fauna e sua dispersão para as moradias da Comunidade, bem como a especulação imobiliária que viabiliza a construção de mansões particulares. “Os detentores do poder econômico querem ocupar essas áreas de natureza abundante sem se aproximar da classe trabalhadora. Eles não querem dividir essas áreas conosco e nos chamam de invasores, apesar de esses mesmos moradores abastados terem se mudado há pouco tempo,” relatou. Leia aqui a presença secular da Comunidade do Horto na Gávea, bairro carioca. 

Rosimeire Lemos, do acampamento cearense do MST “Zé Maria Do Tomé”
Rosimeire Lemos, do acampamento cearense do MST “Zé Maria Do Tomé”

Rosimeire Lemos, do acampamento cearense do MST “Zé Maria Do Tomé”, resumiu: “os territórios são diferenciados, mas as lutas são as mesmas”. Rosi e Emília falaram na aula de fechamento do curso “Mulheres em defesa do território-corpo-terra”, realizado pela Fundação Rosa Luxemburgo e Coletiva Diálogos Feministas desde julho passado. Com o tema “Mulheres, Ambiente e Território: conflitos, resistências e (re) existências” afirmaram que as suas mobilizações se distinguem só na geografia porque visam conservar a vida em todas as dimensões: “A nossa resistência vem de longe, somos mulheres que lutam pela terra, pela água, pela semente crioula, pela agroecologia e pela alimentação saudável”, disse Rosi, completando. Nessa aula de síntese dos aprendizados após nove encontros virtuais, as experiências vividas nos três intercâmbios realizados até 19 de setembro, foram enfatizadas pelas participantes.

Cleomar Ribeiro da Rocha, mulher quilombola e pescadora cearense
Cleomar Ribeiro da Rocha, mulher quilombola e pescadora cearense

Cleomar Ribeiro da Rocha, mulher quilombola, pescadora cearense, ressaltou os múltiplos papeis exercidos pelas mulheres: “somos vigilantes dos territórios, guardiãs das águas e das culturas, nossa resistência dá luz a tudo o que o agro-hidro-minero-negócio invisibiliza, que tem gente em toda parte do Brasil, que temos saberes/fazeres importantes, que fazemos turismo comunitário, que temos quintais agroecológicos, plantas medicinais e artesanatos, que temos comidas típicas, que temos lugares sagrados, que temos identidade negra-quilombola-indígena, que cooperamos em mutirões e confraternizamos nos arraiais. E, também, que só aqui, temos quatro pessoas que vivem sob proteção, então queremos que parem de criminalizar o nosso modo de viver, que cessem as perseguições, porque não vamos ser engolidos pelos discursos de desenvolvimento, não é nada do que dizem e quem é dos territórios, sabe.”

Mulheres em defesa do território-corpo-terra

As palestrantes confirmaram a relevância das parcerias com organizações e universidades, em especial na realização de eventos como este curso “Mulheres em defesa do território-corpo-terra”, que possibilitou a aproximação entre as dezenas de entidades participantes, o conhecimento sobre os variados impactos provocados através dos formatos de desenvolvimento apresentados para cada local sob a baliza de um projeto único, fundamentado por sua vez, numa “monocultura mental” aludindo ao conceito de Vandana Shiva. Ressaltaram também a compreensão de que o feminismo favorece a busca por igualdade em relação aos homens, ao mostrar os silenciamentos promovidos pelo machismo e pelo patriarcado, através da inferiorização, subjugo e dominação sobre o que é feminino, a mulher e a natureza. A colonização perpetua em favor da voracidade capitalista, mas em detrimento dos territórios.

Elisangela Paim, coordenadora do programa latino-americano de clima da Fundação Rosa Luxemburgo, reafirmou o objetivo do curso de visibilizar a existência de todos esses conflitos socioambientais no país, provocados pelo modelo de produção através dos megaempreendimentos de infraestrutura implantados nos territórios sem o consentimento nem participação de habitantes locais.

Renata Reis, da Sempreviva Organização Feminista (SOF) e Marcha Mundial das Mulheres
Renata Reis, da Sempreviva Organização Feminista (SOF) e Marcha Mundial das Mulheres

Para Renata Reis, da Sempreviva Organização Feminista (SOF) e Marcha Mundial das Mulheres, participar de intercâmbios recupera uma prática feminina de busca por soluções em diálogo: “As mulheres elaboram juntas a complexidade das suas resistências enquanto as políticas são decididas de modo abstrato nos gabinetes, longe dos territórios e por pessoas que não vivem nem conhecem o local. Porém, as disputas territoriais são concretas, acontecem no dia a dia. Vimos no curso que as resistências de agora são continuidades, que estão ligadas às alianças entre os movimentos populares do passado, que resultam do acúmulo de saberes das pessoas-sujeitos dos territórios”.

“O capitalismo faz adoecer,” definiu Rosi, a partir do enfrentamento aos projetos do agronegócio, dependentes da irrigação para fruticultura e commodities como algodão, mesmo que reduzam o abastecimento local de água. “Passa um canal dentro do acampamento, mas só pode pegar água até um período do dia. A água vai para uma grande produtora de banana. Os venenos usados lá poluem o ar, a água e o solo, causando doenças como câncer, mas durante a pandemia, fomos nós do MST que distribuímos alimentos saudáveis aos necessitados,” disse.  

Cleomar contou a transformação provocada no território: “Tive uma infância muito rica, com liberdade, acolhimento e amor. Com muitos saberes sobre a lida no território, as melhores práticas e é uma agonia ver tanta destruição. Reagimos em defesa da vida e do bem viver que sempre tivemos e que herdamos de nossos antepassados”. Cleo explicou que cada espaço da área de manguezal e da área das dunas, tem um valor afetivo e simbólico, que não foi respeitado com a implantação da carcinicultura e dos parques eólicos. “O território ensinou a pescar, lembro do primeiro siri que levei para jantar, pescava camarão, marisco, e hoje acabou, a área foi privatizada pela carcinicultura. Tenho memória dos banhos nas marés que curavam gripe, até isso era medicinal e, também acabou. Temos que ir pescar mais longe porque mudaram os ecossistemas daqui. Antes não faltava alimento e agora esse desenvolvimento gera fome, não há mais a fartura que mães e crianças levavam para casa.”

Cada cidadã merece ser valorizada

Emília percebe a forte presença do racismo ambiental através da falta de empatia e exclusão de outros seres humanos, enquanto a natureza viva é ignorada. “Precisam entender que desde a área mais rural até a mais urbanizada, cada cidadão e cada cidadã merece ser valorizado/a, que não é a elite nem o poder público a determinar se permanecemos ou se saímos. Nossa força vem desse reconhecimento de que somos cidadãs e cidadãos e temos o dever de defender nossos direitos,” disse.

Segundo Fabrina Furtado, professora da UFRRJ e Coletiva Diálogos Feministas, o racismo e o patriarcado são estruturantes do capitalismo e fundamentam os projetos de desenvolvimento. “As mais impactadas são as mulheres e as comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas, o povo negro. Não aceitam modos de vida que não se separam da natureza e que assumem a sua complementaridade com o ambiente,” explicou. Outra evidência é a falta de consideração com as comunidades ao implantarem projetos de compensação e pagamentos por serviços ambientais, desvalorizarem a gestão local e supervalorizarem aquela do mercado. Esses projetos inviabilizam os modos de viver locais, causam adoecimento, sobrecarga de trabalho às mulheres e exigem mobilização constante pela sobrevivência.

Para assistir esta aula, clique aqui. Para assistir as aulas anteriores, clique aqui e leia também os respectivos textos.

* Eliege Fante é jornalista, mestra e doutora em Comunicação e Informação pela UFRGS, associada ao Núcleo de Ecojornalistas do RS.